quarta-feira, 7 de maio de 2008

REFLEXÃO: Por que não existem pingüins no hemisfério norte?



Por que não existem pingüins no hemisfério norte?

por Fernando Fernandez

Biólogo, PhD em Ecologia pela Universidade de Durham (Inglaterra).
Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, seu principal interesse
em ensino e pesquisa é a Biologia da Conservação.


Você já pensou por que não existem pingüins no hemisfério norte?

Todos nós aprendemos que pingüins são encontrados apenas no hemisfério
sul, na Antártida e adjacências. Implicitamente, isso nos é passado como
sendo um fato da natureza - como se sempre tivesse sido assim. Mas não é
o caso. A resposta para a nossa questão é muito mais interessante que isso,
e ao mesmo tempo desconcertante e perturbadora.

Não existem pingüins no hemisfério norte porque o homem os extinguiu
em 1844.

A ave que foi originalmente chamada de pingüim é hoje conhecida -
menos do que deveria ser - pelo nome de grande alca ("great auk"). Seu
nome científico - Pinguinus impennis - foi baseado em seu primeiro nome
vulgar. Os pingüins do hemisfério sul, aves pertencentes a outra família e
descobertos depois, receberam o seu nome exatamente por que se
assemelhavam às grandes alcas. As alcas eram aves de grande porte, que
viviam no Atlântico norte, em volta do círculo polar ártico, e que eram
caçadas em imensa quantidade entre os séculos XVI e XIX - enchiam os
porões dos navios para servir de alimento, e também eram usadas como
isca para a pesca de bacalhau e lagostas. Sob essa imensa pressão, as alcas
declinaram inexoravelmente até uma situação desesperadora. Então, no dia
3 de junho de 1844, um grupo de marinheiros avistou o último casal de
grandes alcas, denunciados por sua grande estatura em meio às aves
marinhas menores, na pequena ilha de Eldey, ao largo da Islândia.

Os marinheiros correram para as grandes alcas com porretes. As alcas
tentaram desesperadamente alcançar a segurança da água, mas uma foi
encurralada contra as rochas, e outra alcançada já à beira d´água. Ambas
foram mortas a porretadas. Em seu ninho havia um ovo, que se acredita ter
sido esmagado sob a bota de um marinheiro.

É por isso que não existem (mais) pingüins no hemisfério norte. Não, não é
um fato da natureza, infelizmente. Nós fizemos isso ser assim.

As grandes alcas não estão sozinhas, longe disso. Há uma imensa coleção
de espécies de animais que nós extinguimos nos últimos séculos. Na maior
parte dos casos são extinções muito bem documentadas e conhecidas pela
ciência, de espécies que todos nós deixamos de conhecer por muito pouco.
Muitas delas eram animais maravilhosos, espetaculares, que fariam o
mundo vivo parecer muito mais rico e maravilhoso do que já é.

Eu estou exagerando? Bom, que tal um peixe-boi de oito metros?

Havia, sim, um peixe-boi de oito metros. Um animal dócil, inteligente,
com uma elaborada vida social. Nós acabamos com ele em 1768. A vaca
marinha de Steller, Hydromadalis gigas, que podia alcançar umas dez
toneladas, era o maior mamífero vivente nesse planeta em tempos
históricos, fora as grandes baleias. A vaca marinha de Steller habitava as
águas costeiras das desabitadas ilhas Commander, no extremo leste da
Sibéria, onde foi descoberta pelo naturalista russo Georg Steller em 1741.
Eram pacíficas comedoras de algas marinhas que raspavam das rochas.
Steller escreveu que havia fortes laços sociais entre elas, incluindo uma
espantosa solidariedade. Quando uma era arpoada, as outras tentavam
impedir que ela fosse arrastada para a margem, fazendo um círculo à volta
dela; várias colocavam a si mesmas nas cordas ou tentavam tirar o arpão do
corpo daquela que havia sido ferida. Steller também observou que um
macho voltou dois dias seguidos para junto de sua fêmea morta na costa.
Nada disso impressionou muito os pescadores russos, que após a
descoberta da vaca marinha fizeram uma verdadeira corrida para caçar
aquele animal tão rico em carne e óleo, e com uma pele valiosa. Em 1768 -
apenas vinte e sete anos depois de ter sido descoberta! - a vaca marinha de
Steller já estava extinta.

E que tal a ave mais abundante do Mundo? No século XIX, o naturalista
John Audubon, um dos fundadores da ornitologia, ficou chocado com a
abundância da pomba migratória, Ectopistes migratorius, na América do
Norte. Os bandos eram tão numerosos que há relatos confiáveis de que
obscureciam a luz do sol ao passar; dizia-se que passavam por vários dias
seguidos. Colônias de nidificação chegavam a 160 Km de comprimento.
Audubon estimou que devia haver entre cinco e dez bilhões de pombas
migratórias na América do Norte - o que as fazia, de longe, as aves mais
abundantes do planeta. Mas aquele século, o da desenfreada expansão
americana rumo ao oeste, foi também o do colossal massacre da pomba
migratória. Elas foram caçadas aos milhões, para comida e por simples
esporte. Caçar pombas migratórias e coletar seus ovos era um esporte de
fim de semana para a família inteira, muito popular entre os americanos do
século XIX. Havia matanças mais sérias: em uma competição de caça da
época, o troféu seria do virtuoso caçador que primeiro matasse trinta mil
pombas migratórias. Você leu certo, trinta mil, só pelo vencedor. Com esse
tipo de pressão, as populações da pomba migratória começaram a diminuir,
e houve quem dissesse que era preciso limitar a caça, ou a espécie acabaria
desaparecendo. Foram chamados de alarmistas, riu-se deles. Houve
também quem dissesse da pomba migratória que era óbvio que havia tanto
que nunca iria acabar - mais ou menos como alguns hoje dizem da
Amazônia. Mas as populações continuaram diminuindo, e o inacreditável
aconteceu. Em 1900, a pomba migratória se extinguiu na natureza. No dia
1º de setembro de 1914, Martha, a última pomba migratória, morreu no
Zoológico de Cincinnati. Estava extinta a espécie de ave mais abundante
do planeta no século XIX.

E por que não um lobo marsupial? Quando falamos em marsupiais, a
maioria das pessoas imediatamente pensa em cangurus, ou quem sabe nos
gambás tão comuns em nosso país. Mas até há poucas décadas havia um
lobo marsupial, ou tilacino, um dos mais espantosos seres que já se viu.
Poucos reparam no significado de um nome científico, mas raramente um
nome científico é tão revelador quanto Thylacinus cynocephalus. "Thyla"
quer dizer bolsa, "cinus" ou cynos" quer dizer cachorro, e "cephalus" quer
dizer cabeça. Thylacinus cynocephalus, portanto, quer dizer "cachorro com
bolsa com cabeça de cachorro". Perdoe o pleonasmo do cientista que
batizou o bicho, meu caro leitor. Experimente procurar por "thylacine" no
Google Images. O tilacino é tão parecido com um cachorro que qualquer
leigo poderia facilmente confundi-los. A semelhança da cabeça é de fato
tão extraordinária que apenas os dentes, uns dentes triangulares
característicos de marsupiais, denunciam que se trata de um parente dos
cangurus. Os quartos traseiros caídos e a cauda afinando gradualmente,
como a de um canguru, também traem sua ancestralidade marsupial. Mas
não se trata simplesmente de um canguru com crise de identidade, que acha
que é cachorro. Isso é o mais interessante de tudo: o tilacino é um
espetacular exemplo do fenômeno que os biólogos chamam de
convergência evolutiva, ou seja, animais de linhagens muito diferentes -
no caso, os mamíferos placentários (como nós) e os marsupiais - evoluindo
formas similares em lugares diferentes, como adaptação a papéis
ecológicos similares. O tilacino, comum na Austrália inteira até uns poucos
milhares de anos atrás, sobreviveu na grande ilha da Tasmânia, ao sul do
continente australiano, até bem dentro do século XX. Porém, foi
impiedosamente perseguido pelos colonizadores australianos, em represália
à predação sobre suas ovelhas. A extinção do tilacino na natureza não teve
nada de acidental, ao contrário, foi meticulosamente planejada, e levada a
cabo como política oficial do governo da Tasmânia. Com o fim de
erradicar a "praga", recompensas foram pagas para cada pele de tilacino
entregue. À medida que os animais começavam a escassear, o valor da
recompensa foi aumentado cada vez mais. Em 1936, o governo da
Tasmânia enfim mudou de política e decretou uma lei protegendo a
espécie. Tarde demais. Naquele mesmo ano, o último tilacino conhecido,
uma fêmea, morreu no zoológico de Hobart, capital da Tasmânia. Por
negligência de seus tratadores, o animal foi deixado na parte exposta de sua
gaiola, sem acesso a seu ninho protegido, e morreu de hipotermia numa
noite fria de setembro. Há alguns registros não confirmados de tilacinos
vistos na natureza nos anos seguintes; um dos mais confiáveis é o de uma
fêmea que teria sido morta por um fazendeiro com seus cachorros por volta
de 1940. Dentro da bolsa da fêmea havia três filhotes. Não houve mais
registros depois disso.

Deixei para o fim o meu favorito, se é que pode haver um favorito numa
lista dessas: o menor, o mais sutil, mas nem por isso o menos espetacular.
Um animal tão fantástico que parece ter saído da mais imaginativa ficção, e
que você e eu fomos privados de conhecer por poucas décadas. Morcegos
voam, todos eles, certo? Claro. Sempre foi assim? Não. Em algumas ilhas
do Pacífico, onde eram ausentes tanto grandes predadores como também
roedores nativos, evoluíram várias espécies de morcegos terrestres. Eram
animais bizarros, que eram capazes de voar só uns poucos metros, mas que
se moviam agilmente pelo chão da floresta nas patas de trás e nos cotocos
das asas, exercendo o papel ecológico dos roedores. Eram tão bem
adaptados à vida terrestre que alguns tinham bolsas ao lado do corpo onde
recolhiam as asas. À medida que a colonização das ilhas do Pacífico
avançava, animais introduzidos pelo homem, como ratos e gatos, foram
extinguindo os morcegos terrestres em ilha após ilha. As ilhas Salomão e
Big South Cape, que permaneceram livres de ratos domésticos até muito
recentemente, foram seu último refúgio. Mas mesmo ali, os ratos chegaram
em 1962 ou 1963, e em 1965 Mystacina robusta, a última espécie de
morcegos terrestres, deixou de existir. É possível que ainda houvesse
Mystacina quando você nasceu, ou pelo menos quando seus pais nasceram.
Mas seus filhos não poderão mais vê-lo.

Hora de desfazer uma ilusão bastante arraigada. Fala-se muito em espécies
em extinção, mas muita gente acha que o homem extinguiu até agora
relativamente poucas espécies, e que portanto nossa capacidade de
extinguir espécies possa estar superestimada. Não é o caso. Apenas de
1600 para cá, foram comprovadamente extintas pelo homem pelo menos
umas 120 espécies de aves, umas 60 de mamíferos e pelo menos 25 de
répteis, entre muitas outras. Muitos desses casos, inclusive os acima, são
descritos em um livro maravilhoso, "A Gap in Nature", de Tim Flannery e
Peter Schouten, publicado em 2001. Além disso, já extinguimos mais de
600 espécies de plantas, e provavelmente vários milhares de invertebrados,
que são mais mal conhecidos. A lista continua crescendo: há apenas um
ano foi a vez do baiji, o golfinho do Yang Tse. Isso tudo não inclui
centenas de outras extinções de animais de grande porte causadas pelo
homem muito antes da Idade Moderna - mas isso já é outra história.

Por que essas coisas ainda são tão pouco divulgadas e discutidas? Eram
animais espetaculares, fascinantes, são histórias que mexem com nossos
sentimentos, mas nossa cultura não parece ter olhos para elas. Houve uma
expressiva melhora nos últimos anos, mas ainda é raro encontrar sobre as
extinções históricas em programas de televisão, livros e revistas, e portanto
elas não atingem nossos corações e mentes. Acho que a melhor explicação
para isso é mesmo a imensa capacidade que a nossa cultura tem de não
olhar para aquilo que não lhe interessa - o que é ótimo para quem quiser
manter o status quo, mas péssimo para quem queira virar o jogo.

Quando eu era criança, História me parecia fascinante, mas ao mesmo
tempo o menos aplicado ou menos útil de todos os assuntos. Minhas
professoras sempre tinham o mesmo argumento sobre a importância do
estudo da História: é preciso estudar História para aprender com os erros
do passado. Só agora sou capaz de perceber o quanto elas estavam certas.

fonte: site ((o)) eco
http://arruda.rits.org.br/oeco/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=6&pageCode=156&textCode=27232

Um comentário:

Adriana disse...

Simplesmente fascinante e revoltante ao mesmo tempo.