A população da jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), que só existe na Ilha da Queimada Grande, a 33 quilômetros de Itanhaém (SP), pode ter sido reduzida à metade em um período de dez anos, de acordo com um estudo realizado por pesquisadores do Instituto Butantan.
O estudo, publicado na revista South American Journal of Herpetology, indica que há cerca de 2.100 serpentes na ilha – aproximadamente a metade do número encontrado na literatura. A estimativa, feita por grupo que estuda a espécie desde 1995, faz parte de um estudo que tem apoio da FAPESP na modalidade Auxílio Regular a Pesquisa.
Para os cientistas, é provável que as serpentes venham sendo retiradas ilegalmente de seu hábitat. Embora o desembarque na ilha seja restrito a pesquisadores do Butantan, há relatos da presença de outras pessoas no local, passando-se por cientistas. Em São Vicente (SP), uma pesquisadora foi abordada por um homem que ofereceu R$ 50 mil por serpente.
O artigo foi elaborado por Otavio Marques, diretor do Laboratório Especial de Ecologia e Evolução (Leev) do Instituto Butantan, Márcio Martins, do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (USP), e Ricardo Sawaya, também pesquisador do Leev.
De acordo com Marques, os dados gerados pela pesquisa permitiram classificar a jararaca-ilhoa na categoria “criticamente em perigo”, o mais alto grau de ameaça de extinção pelos critérios internacionais. A jararaca-ilhoa foi incluída, no início de outubro, na lista das espécies da fauna silvestre ameaçadas no Estado de São Paulo.
“Fazemos viagens periódicas à ilha desde 1995 e nos últimos anos notamos intuitivamente que a população estava decrescendo – isto é, parecia haver muito menos cobras do que antes. Fizemos a estimativa populacional em 2002 e buscamos as planilhas com os registros anteriores. Percebemos que o número de animais relatados havia se reduzido à metade”, disse Marques à Agência FAPESP.
O método para a estimativa, segundo ele, consistiu em amostrar 26 quadrados de 10 metros de lado em diversos pontos da ilha, que tem 430 km², contando os espécimes. “Com a ajuda de uma botânica, calculamos o número de hábitats disponíveis e extrapolamos os dados para toda a ilha”, explicou.
O projeto de pesquisa tem o objetivo de estudar o uso do ambiente pela jararaca, comparar a disponibilidade dos recursos e verificar se eles estão influenciando no uso do substrato pela serpente. Além dos hábitos alimentares do animal, os pesquisadores estudam a sua biologia reprodutiva, trabalhando em coleção, com exemplares mortos coletados na ilha.
“A serpente tem hábitos arborícolas e migra, ao longo do ano, para pontos mais altos ou mais baixos das árvores. Um dos pesquisadores do grupo está estudando a disponibilidade, em diversas alturas, do alimento da jararaca, que consiste principalmente em aves migratórias”, disse.
Suspeita de tráfico
Karina Kasperoviczus, orientanda de mestrado de Marques, foi a pesquisadora abordada com oferta de dinheiro. O contato ocorreu em São Vicente, onde os pesquisadores partem para a viagem de duas horas de barco até a ilha.
“Eles nos abordaram e propuseram que, se trouxéssemos serpentes da ilha, venderiam e dividiriam o lucro conosco, metade para cada lado. Disseram que os receptadores comprariam quantas cobras pudéssemos trazer”, disse.
A pesquisadora e seus colegas dizem ter ido à delegacia para registrar um boletim de ocorrência, mas não puderam fazê-lo porque não dispunham de testemunhas ou gravação que comprovassem a oferta.
Marques afirma não saber o que os receptadores fazem com as cobras. “Talvez seja para vender como bicho de estimação. Mas não podemos esquecer que a jararaca-ilhoa tem um veneno muito especial”, disse.
Segundo Marques, por ser uma espécie com alimentação especializada – que, ao contrário de outras jararacas, não come roedores, apenas aves – e por estar isolada na ilha há pelo menos 11 mil anos, o veneno da jararaca-ilhoa, notoriamente poderoso, pode ter propriedades especiais.
“Certamente o veneno dela tem propriedades e toxinas muito específicas. É especulação, mas pode haver um interesse toxicológico. Temos fármacos feitos a partir de veneno de jararaca com grande impacto comercial, como o captopril, usado contra a hipertensão, que rende R$ 5 bilhões por ano à empresa que o fabrica”, apontou.
Seja qual for o uso dado às cobras, o pesquisador afirma que há indícios de que os animais estão mesmo sendo retirados da ilha. Pescadores trabalhando nas proximidades da ilha já relataram, por diversas vezes, a presença de outras pessoas na ilha.
“Os pescadores comentam que viram um pessoal do Butantan colocando as cobras em caixas de isopor e levando embora. Mas nós não utilizamos caixas de isopor e, em hipótese alguma, retiramos uma cobra da ilha. Já ouvi relatos assim de pelo menos três pessoas diferentes”, contou. Segundo ele, um doutorando do grupo encontrou, na internet, anúncio de venda da cobra em um mercado de Amsterdã, na Holanda.
Segundo Marques, os estudos indicam a necessidade urgente de fiscalização para coibir a remoção ilegal de serpentes, além de um programa de monitoramento para acompanhar as flutuações no tamanho populacional da espécie. “Fizemos uma proposta, há cerca de cinco anos, para transformar a Ilha da Queimada Grande em parque nacional, mas ela não saiu do papel devido à pressão das operadoras que promovem a caça submarina na área”, disse.
Como é inviável que alguém more na ilha, ainda repleta de serpentes, o pesquisador sugere que a transformação em parque nacional ou estadual é a melhor forma para melhorar a fiscalização. “É um local muito bonito e procurado para o mergulho contemplativo. Se tivermos um parque ali, podemos conseguir um grande fluxo de turistas, que inibiria o tráfico de animais, além de gerar recursos para os pescadores locais.”
O estudo da jararaca-ilhoa, de acordo com Marques, é de grande importância científica, já que a espécie tem uma biologia bastante distinta das jararacas continentais. Trata-se de uma espécie endêmica que vive em condições muito particulares, em um sistema fechado, sem uma pressão de predação muito grande. Isso tudo aumenta seu interesse científico.
“Além disso, ali temos uma condição de estudo de campo que não existe em nenhum outro lugar. Durante todo o período da minha tese de doutorado, na Mata Atlântica, vi meia-dúzia de jararacas. Na ilha, em um dia, podíamos ver 15 ou 20 bichos tranqüilamente”, disse.
O próximo passo, além do estudo de diversos aspectos da biologia reprodutiva e do uso do ambiente pela jararaca-ilhoa, será a criação de um sistema de conservação ex-situ para a espécie.
“Vamos atrás de recursos para criar compartimentos aqui no Butantan onde poderemos manter a serpente em ambiente semelhante ao natural. É um projeto complexo, mas nos dará uma possibilidade de reintrodução da espécie em seu ambiente natural, caso não consigamos impedir a extinção”, explicou.
(Fonte: Fábio de Castro / Agência Fapesp)
http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=41597
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