CÍNTIA MARCUCCI
da Revista da Folha
A regra é clara: de acordo com o Ministério da Saúde, desde 1963, cães que apresentem exames soropositivos para leishmaniose visceral canina devem ser sacrificados. Mas nem todos veterinários vêem a eutanásia como melhor saída para o controle da zoonose e para evitar contaminação de humanos.
A polêmica fica ainda mais forte por conta de a leishmaniose ser uma doença que existe em outros locais do mundo, como Europa e Estados Unidos, e o Brasil ser o único país em que o sacrifício dos animais é obrigatório. "Na Espanha, onde a doença também é endêmica na variação canina, existem medicamentos e até ração desenvolvidos especificamente para os cães doentes, e o dono tem o direito de decidir se trata ou não o animal", diz o veterinário Fábio dos Santos Nogueira, que fez seu doutorado sobre a doença e não acredita que a eutanásia resolva o problema.
Para ser transmitida de um cão para outro ou para humanos, é preciso que o animal infectado seja picado pelo mosquito-palha, transmissor da doença. "Desde 97, foram sacrificados mais de 13 mil cães na região de Araçatuba e a doença não foi controlada. Quem gosta de cachorro substitui o cão sacrificado por outro, que fatalmente será infectado pelos mesmos mosquitos, e continuará o ciclo", explica Fábio.
Presente no país há mais de 80 anos, a leishmaniose chegou ao Estado de São Paulo somente em 98, na região de Araçatuba. Sem cura, a doença avança seguindo as malhas rodoviária e ferroviária do Estado. Por enquanto, não existem casos de cães infectados na capital, mas já há animais que contraíram o parasita em outros locais e vivem em São Paulo.
Em Cotia e Embu, vizinhas da capital, a leishmaniose canina já é endêmica. Segundo dados aproximados das vigilâncias em saúde e zoonoses de cada município, foram encontrados por volta de 30 casos em Embu e 26 em Cotia. Em ambas, ainda não há registros de contaminação humana, mas os donos de animais infectados são notificados sobre a recomendação da eutanásia. O cão é o hospedeiro, ou seja, ao picar um animal contaminado, o mosquito se contamina e passa a doença para o homem ou para outro cão.
Tratar os animais é possível, mas a droga mais eficaz é usada em humanos e proibida para utilização em cães. "A leishmaniose é um problema de saúde pública. O tratamento do cão pode selecionar os parasitas mais resistentes e fazer com que a medicação perca sua eficácia", aponta a veterinária doutoranda em saúde pública pela Unesp de Botucatu Juliana Giantomassi Machado, que vê a eutanásia como uma medida necessária para o controle.
"O tratamento não é para qualquer animal. É preciso disponibilidade de dinheiro e tempo do dono, pois, no início, o cão deve ser monitorado praticamente todos os dias. Depois do controle inicial, deve ser assistido de seis em seis meses pelo resto da vida", explica o veterinário do Hospital Veterinário da Anhembi Morumbi, Márcio Moreira. "Não sou contra a eutanásia, há casos em que é a melhor opção. Mas defendo o direito do dono, se tiver condições e quiser, de tratar o cão."
Diagnóstico preciso
Entre as questões que ficam antes de se decidir pela eutanásia está a precisão do diagnóstico. Os métodos usados pela rede pública e pelos centros de controle de zoonoses de cada cidade são testes feitos a partir de amostras de sangue e que indicam a presença de anticorpos para a leishmânia.
A veterinária Carla Berl, do Pet Care, que realiza exames para identificar a doença, diz que existem fatores que podem levar a um resultado falso -positivo ou negativo. "Se o cão foi infectado há pouco tempo, pode estar no período de incubação e o teste resultar negativo. Há outras doenças e a própria vacina existente hoje faz com que o resultado possa ser positivo erroneamente."
A vacina é outra polêmica. Aprovada pelo Ministério da Agricultura -que regula a medicação animal-, ainda não é recomendada como forma de prevenção pelo Ministério da Saúde. Sua aplicação só é permitida em áreas endêmicas, e os custos ainda são elevados para a população de baixa renda (R$ 80 a dose).
Existem testes que diferenciam o animal vacinado ou que tem outras doenças do infectado. Em vez da identificação do anticorpo, eles encontram o parasita em material que pode ser retirado da medula óssea do cão. Moradora de uma chácara entre Embu e Cotia, a professora de equitação Mariana Falcão Arantes, 33, decidiu imunizar seus animais assim que soube que a vacina estava liberada em Cotia. "Faço o que posso para que eles fiquem saudáveis. Eles sempre usaram coleiras repelentes. Tenho uma proteção a mais." Foi assim que os boxers Tica e Chorão, 1 ano e meio, a border collie Taiga, 1, o rottweiler Horus, 1, e os mestiços Brisa, 2, e Oliver, 5, ganharam mais uma vacina.
Mosquito vilão
Mesmo com visões diferentes sobre o destino dos animais, os veterinários concordam que é preciso fazer mais do que apenas sacrificar o cão. A ação deveria ser conjunta com a educação da população sobre as formas de prevenção e com o combate ao mosquito-palha, que carrega o parasita e infecta animais e humanos.
"Segundo pesquisadores, a eliminação de cães soropositivos não leva à comprovada diminuição da taxa de contaminação humana. Isso leva à conclusão de que somente a eutanásia, sem o controle do vetor, não é suficiente para impedir o alastramento da infecção", diz o professor da USP Carlos Eduardo Larsson.
Prevenção ainda é o melhor caminho para não cair no dilema do que fazer se o pet contrair a doença. Mesmo nos locais onde não há nem endemia nem o mosquito, manter as áreas externas limpas, sem matéria orgânica, e os canis telados são úteis para que os insetos fiquem à distância.
Combinar o uso da coleira e, quando possível, a vacina, é o conselho dos veterinários. Deve ser seguido especialmente por pessoas que vivem nas proximidades ou em áreas endêmicas e ganha um alerta a mais com a chegada das férias.
Além dos que saem da cidade e vão para sítios, chácaras e fazendas em cidades onde pode haver risco de contaminação, quem deixa o pet em hotéis deve redobrar a atenção. Com tantos cães juntos, fica impossível saber a origem de cada um e ninguém vai querer um parasita como lembrança da viagem.
Saiba mais
O que é
A leishmaniose visceral canina (LVC) é uma doença crônica que ataca cães, raposas e outros canídeos silvestres. É uma zoonose, ou seja, pode ser transmitida ao homem. Pode ser fatal se não for tratada.
Como é transmitida
O mosquito-palha pica um animal infectado. Ao picar outro animal ou pessoa sã, o mosquito transmite o parasita.
Sintomas
Feridas na pele difíceis de cicatrizar, no focinho e nas pontas das orelhas, crescimento das unhas, emagrecimento, fadiga, prostração, febre e anemia. Em casos avançados, pode comprometer os rins.
Diagnóstico
Pelo exame de sangue, mesmo que o resultado seja positivo, existe chance de o animal não estar infectado. Outro teste, que utiliza material retirado da medula óssea, identifica a presença do protozoário.
Tratamento
- A doença não tem cura. Decreto federal indica que animais infectados devem ser sacrificados. Alguns veterinários questionam a eficácia da medida.
- O tratamento, igual para cães e humanos, é à base de medicamentos. Demorado, exige acompanhamento e exames.
- O Ministério da Saúde não permite o tratamento canino e o Conselho Regional de Veterinária não recomenda a prática.
Prevenção
- Vacina para cães que moram ou freqüentam áreas endêmicas, a partir de quatro meses, com exames negativos. A primeira aplicação é de três doses, a cada 21 dias. Deve ser repetida anualmente.
- Coleiras antiparasitárias e repelentes de insetos em cães a partir dos três meses.
- Mantenha jardins e quintais limpos para evitar a reprodução do mosquito.
- Proteja canis com telas de trama fina para evitar a entrada do mosquito.
- Evite deixar o cão exposto ao ar livre entre 18h e 23h, quando há mais insetos.
- Cuidado ao comprar filhotes originários de áreas endêmicas.
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