quarta-feira, 18 de junho de 2008

"Em 2050, seremos todos vegetarianos"

"Em 2050, seremos todos vegetarianos"
Comer menos carne é o único meio de alimentar 10 bilhões de humanos,
diz o autor de "O Fim da Comida"


Época, 12/06/2008

No Ensaio Sobre O Princípio Da População, publicado em 1798, o inglês
Thomas Malthus fez uma afirmação alarmante. Como a população humana
crescia em progressão geométrica e a produção de alimentos em
progressão aritmética, no longo prazo o saldo desse descompasso seriam
a fome e o aumento da mortalidade, ajustando o tamanho da população à
oferta de alimento. Em 1800, havia 1 bilhão de humanos. Hoje, somos
6,6 bilhões. A produção agrícola superou a explosão populacional.
Malthus estava errado? Para o jornalista americano Paul Roberts, de 54
anos, talvez não. A hora de Malthus pode ter chegado. Em The End of
Food (O Fim da Comida, editora Houghton Mifflin), Roberts prevê que,
até 2050, a demanda por comida ultrapassará a oferta. Um primeiro
alerta seria a atual explosão do preço dos alimentos.

A tonelada de arroz passou de US$ 400 para US$ 1.000 em cinco meses.
No Brasil, o feijão subiu 168,44% em 12 meses. A culpa, para os
analistas, é de chineses e indianos, que estão ganhando mais e comendo
mais. Em 2030, a China importará 200 milhões de toneladas de grãos, ou
seja, todo o excedente exportável mundial. O que sobrará para os
países pobres? Se nada for feito, a fome.

ÉPOCA – Malthus estava certo?

Paul Roberts – Após 200 anos, é cada vez mais difícil dizer "não" a
essa pergunta. Continuamos desenvolvendo novas tecnologias para
produzir mais comida, mas enfrentamos novas restrições que os
fazendeiros do passado não tinham. Historicamente, a forma de aumentar
a produção era expandir a área plantada. Isso é cada vez mais difícil.
A maioria das terras aráveis do planeta já é usada e a maior parte do
que resta são as últimas florestas. É o caso do Brasil, onde as novas
áreas de plantio são obtidas à custa da derrubada de florestas.

ÉPOCA – É hora de outra Revolução Verde?

Roberts – A Primeira Revolução Verde, que transformou a agricultura
entre os anos 40 e 60, multiplicou a produção de alimentos graças ao
uso de fertilizantes e ao desenvolvimento de novas sementes. Ainda é
possível aumentar a produtividade usando os transgênicos. Mas essa
tecnologia tem seus limites. Não podemos também esquecer que o preço
da energia está subindo e que a agricultura moderna foi pensada no
tempo em que o barril de petróleo custava US$ 20. Caso o preço se
estabilize entre US$ 125 e US$ 200, o sistema atual não se sustenta.

ÉPOCA – O que fazer?

Roberts – Há três grandes desafios para criar uma Segunda Revolução
Verde. O primeiro é o aumento do preço do gás natural, o principal
insumo na produção de nitrogênio sintético, que por sua vez é o maior
insumo dos fertilizantes. A maior parte do excedente agrícola atual se
deve à disponibilidade de nitrogênio barato. Se o preço dos
fertilizantes se mantiver elevado, alimentar daqui a 50 anos outros 4
bilhões de pessoas, além dos 6,6 bilhões atuais, será um tremendo
desafio. É preciso alternativas para produzir novos fertilizantes.

ÉPOCA – O segundo desafio é...

Roberts – A falta d'água. Para isso não existe alternativa. Não há
continente onde não falte água. Cada país responde ao desafio de forma
diferente. A China está substituindo a produção de grãos, que usa
irrigação maciça, pela de frutas e verduras, que consome menos água.
Em 2007, importou 30 milhões de toneladas de soja, boa parte oriunda
do Brasil. Isso significa que a China está importando de vocês sua
água. Está ocorrendo uma mudança no "mercado virtual" de água. Por
algum tempo, isso deve contrabalançar a escassez. Mas, no fim das
contas, não existe água suficiente no mundo para atender ao aumento
projetado na demanda de alimentos.

ÉPOCA – E o terceiro?

Roberts – O último é o maior de todos: as mudanças climáticas. Elas
vão dificultar o aumento na produção de comida e acentuar a escassez
de água. A alteração do clima também será um desafio para que grandes
exportadores, como os Estados Unidos e o Canadá, consigam elevar sua
produção. Os desafios são complexos e as respostas para eles também.
Será preciso reduzir o uso de energia e de água na agricultura, ao
mesmo tempo que se elevam a eficiência e a produtividade. Porém, isso
não será o bastante. Seremos obrigados a comer menos.

ÉPOCA – A Terra pode alimentar 2,5 bilhões de bocas com uma dieta
ocidental, rica em carne, ou 20 bilhões de vegetarianos. Mas somos 6,6
bilhões...

Roberts – A pecuária e a avicultura consomem grande parte da produção
de grãos. Tome o exemplo dos Estados Unidos, com um consumo anual per
capita de 100 quilos de carne, comparado ao da Índia, com 15 quilos. É
preciso elevar o consumo da Índia e desencorajar o consumo nos Estados
Unidos e na Europa, para tentar atingir uma média global de consumo
mais justa e sustentável.

ÉPOCA – Isso não é utopia?

Roberts – É preciso reduzir o consumo de carne. A questão é como
fazê-lo. Nos Estados Unidos não se toca no assunto. Achamos que comer
carne é um direito eterno. Seu consumo é considerado um índice de
prosperidade – apesar dos problemas de saúde, como doenças cardíacas,
que seu consumo acarreta.

ÉPOCA – No Brasil, é a mesma coisa.

Roberts – O Brasil está se desenvolvendo, e a lógica pressupõe que num
país bem-sucedido come-se tanta carne quanto se deseja. Para inverter
essa lógica, é preciso um líder corajoso e habilidoso. Essa não é uma
prioridade dos candidatos à Presidência dos Estados Unidos. Cedo ou
tarde, essa discussão terá de ser atacada.

ÉPOCA – Barack Obama e John McCain têm opinião a respeito?
Roberts – Não sei. Não é uma questão que eles levantariam na campanha.
Não soaria como algo patriótico.

ÉPOCA – O aumento do preço da comida ameaça elevar em 100 milhões o
total de 862 milhões de famintos no planeta. Mas há 1 bilhão de
pessoas com sobrepeso. O problema da humanidade é a fome ou o
diabetes?

Roberts – Ambos são problemas. Se fosse forçado a escolher,
priorizaria a subnutrição, pois ela mata as pessoas muito mais cedo, e
sua solução contribuiria para a estabilidade do clima. Dito isso, se
fracassarmos em lidar com a questão da obesidade, no longo prazo
pagaremos um enorme preço na forma de despesas médicas. Por 200 mil
anos, a espécie humana teve sua dieta restrita pela disponibilidade ou
não de alimento. A invenção da agricultura, há 10 mil anos, mudou esse
padrão. A obesidade é conseqüência do acesso a uma alimentação farta e
barata. Para manter uma dieta saudável, é preciso disciplina, e nós
não fomos biologicamente projetados para controlar nossa gula.

ÉPOCA – O Brasil será o celeiro do mundo à custa da destruição da Amazônia?

Roberts – Apesar de conhecermos as conseqüências científicas e
ambientais da rápida expansão da agricultura, somos incapazes de
resistir à pressão política e econômica. Na imprensa econômica
americana, o Brasil é retratado como uma história de sucesso. O país
será uma superpotência na produção de alimentos. No entanto, quando
olhamos as publicações científicas, o Brasil é retratado em termos
muito negativos. A lógica gira em torno do fato de a população chinesa
ganhar hoje o suficiente para comer carne, o que leva à destruição das
florestas no Brasil. A questão fundamental é: como dizer a 1,3 bilhão
de chineses que eles devem comer menos carne, se comer carne tem sido
um objetivo humano por milhares de anos?

ÉPOCA – Seu livro anterior se chamava O Fim do Petróleo. O atual é O
Fim da Comida. Qual será o próximo, o fim da água? O fim da natureza?
O fim da esperança?

Roberts – (Risos.) Vou trabalhar num livro sobre as finanças globais,
outro desastre. O mercado financeiro é a chave de tudo. Nada do que
conversamos, como a conversão de florestas em área de cultivo no
Brasil, pode acontecer sem a ajuda dos mercados financeiros. Eles
estão em crise. São uma faca de dois gumes que é preciso entender
melhor.

ÉPOCA – O senhor é otimista com o futuro?

Roberts – Acho que sou. Ao dissecar a questão da escassez de recursos,
aprendi como as coisas podem se tornar ruins. Eu sei qual é o pior
cenário possível se não alterarmos a rota na qual caminhamos. Com isso
em mente, acredito que qualquer mudança será para melhor. É muito
fácil ser pessimista, mas isso não faria o menor sentido. A humanidade
sempre conviveu com a escassez. Essa é a condição humana.

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