segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Dentista abandona consultório em prol de cavalos vítimas de maus-tratos

FLÁVIA GIANINI
da Revista da Folha

Aos 47 anos, a dentista Cynthia Fonseca cursa o segundo período de veterinária. Durante a faculdade de odontologia, sua vocação ficava patente em atitudes como a de tentar salvar as cobaias. "Eu e alguns amigos roubávamos os bichinhos", conta ela. "Um dos professores falava que, se eu quisesse salvar os animais, que fosse estudar veterinária!"

O conselho foi seguido neste ano, para alegria do marido, sócio e também dentista Décio Ciasca, 52. Ele já estava cansado das encrencas em que a mulher se metia para tirar os cavalos das ruas e encaminhá-los para o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ). Incomodado com esses arroubos heróicos, ele havia dado um ultimato quando a mulher entrou abruptamente no consultório toda suja, fedorenta e atrasada. Ou ela cuidava dos animais, ou dos pacientes.

Depois de 23 anos de profissão completados em 2005, ela escolheu os cavalos. "Ninguém cuida desses animais." Conhecida como "a mulher dos cavalos", a dentista fez fama em bairros afastados do centro ao recolher éguas, mulas, jumentos e cavalos. A tarefa, claro, deixa furiosos os donos que desrespeitam a lei municipal que proíbe a circulação de animais de grande porte na capital desde 2006.

A história de Cynthia como defensora de eqüídeos começou em 2002, quando uma amiga de sua mãe morreu. Era ela quem identificava os cavalos nas ruas e comunicava ao CCZ. "Fiquei pensando como iam ficar os animais", lembra Seguindo o outro lado da tradição familiar (a mãe é bióloga e presidente do Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal), a dentista passou a coordenar o projeto Anjo dos Cavalos, com apoio da ONG Quintal de São Francisco.

Em seis anos à frente do projeto, Cynthia contabiliza cerca de 3.500 cavalos recolhidos, tratados e encaminhados a sítios e fazendas dispostos a recebê-los. "É cada situação absurda", diz ela, sobre os abusos: patas em carne viva por falta de ferraduras adequadas, cascos apodrecidos, orelhas quebradas e animais cegos por chicotadas.

Fome e maus-tratos

Já houve casos de donos que furaram os olhos do cavalo quando o bicho se recusava a trabalhar. "Eles querem que o cavalo puxe carroça o dia inteiro e, à noite, alugam o animal para outro carroceiro, como se fosse máquina, sem necessidade de descanso", explica Cynthia. A dentista credita a maioria dos maus-tratos à falta de informação. "O chicote usado para fazer o cavalo andar atinge o olho e acaba cegando o animal."

Boa parte das debilidades apresentadas pelos animais é decorrente de fome. A maioria vive do pouco capim que encontra, revira lixos em busca de comida e não chega perto do peso de um animal sadio (500 kg). "Cada cavalo deveria comer cerca de cinco quilos de ração e, pelo menos, meio fardo de feno por dia", calcula a ex-dentista.

Cynthia parou de contar quantas vezes foi ameaçada. Os donos podem ter o animal de volta se procurarem o Centro de Controle de Zoonoses em até cinco dias úteis, mas só o levam depois de pagarem a multa, as taxas referentes ao exame de anemia infecciosa e o chip instalado para identificação.

Em razão do custo total de cerca de R$ 1.500, apenas 0,6% dos cavalos são resgatados pelos ex-donos. "Não cobre o valor de mercado do animal, que é de cerca de R$ 200", compara Cynthia. Após cinco dias, o cavalo é entregue aos cuidados do projeto. Nessa hora, começa a luta da coordenadora para encontrar donos de sítios, chácaras e fazendas fora de São Paulo para abrigar os animais.

O processo para salvar um cavalo começa com uma denúncia anônima, geralmente ao CCZ. O centro, então, manda um caminhão para capturar o eqüino abandonado ou circulando em vias públicas.

O casal de biólogos Fátima, 37, e Oswaldo Campos, 49, soube do projeto pela internet. Eles decidiram adotar dois animais, mas ficaram sensibilizados ao ver de perto a situação dos cavalos. Hoje são fiéis depositários de quatro, que vivem no sítio deles, em Ibiúna (60 km de São Paulo).

A atitude do casal sensibilizou a coordenadora, acostumada a voluntários que procuram belos exemplares de quatro patas. "Os animais mais maltratados são os que mais precisam de ajuda", diz ela. O biólogo só critica a burocracia: "O documento de liberação demora a ficar pronto e não havia transporte para os animais", conta ele.

Cynthia explica que paga os caminhões com dinheiro de doações, mas admite que o processo tem falhas. "Tentamos escolher boas famílias e agilizar o processo", diz. "Às vezes, nem durmo pensando se os cavalos vão ficar bem."

Acordada, ela protagonizou cenas heróicas. Como parar o carro na marginal Tietê para socorrer uma égua em trabalho de parto enquanto puxava a carroça. Uma madrinha e tanto para Maria Eduarda que hoje vive junto da mãe em um sítio em Ibiúna.

Passo-a-passo

1. O CCZ recebe denúncias pelos telefones: 0/xx/11 6224-5540 ou 5567 e pelo número 156

2. O animal recolhido é levado à sede do centro por cinco dias, quando faz exame de anemia infecciosa. Se der positivo, é sacrificado. Se der negativo, é entregue a uma ONG, que irá busca um novo abrigo para o bicho

3. O novo "dono" assina um termo de compromisso, no qual reconhece que não tem a posse do cavalo e, portanto, não pode vendê-lo ou trocá-lo. Deve aceitar receber visitas supervisionadas

http://www1.folha.uol.com.br/folha/bichos/ult10006u432031.shtml

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