segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O homem da carrocinha

Recebi este texto por email e penso que vale a pena postá-lo aqui no blog:

O homem da carrocinha.. .
POR NATHALIA ZIEMKIEWICZ


...não é do mal. Acompanhamos a rotina de Marcos, laçador do centro de zoonoses de São Paulo. Casado, três filhas, morador de Pirituba, adotou oito cães nos últimos sete anos.


O agente Marcos Barreto com um cão que capturou
Ele tem um sorriso vira-lata. Desses malandros, que cativam menos por serem perfeitinhos e mais pela simpatia. Católico, Marcos Roberto Barreiro carrega na carteira a imagem de Nossa Senhora Aparecida e um terço. De segunda a sexta-feira, o funcionário público se despede da mulher e das três filhas (de 12, 16 e 19 anos) e leva uma hora e meia no trajeto Pirituba–Santana de ônibus. Minutos antes das 8h, atravessa o portão do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de São Paulo. Sempre com o pé direito. E se benze – só para garantir "que o dia transcorrerá normalmente"

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O receio é justificável: há sete anos, Marcão veste calça, colete e boné azuis para trabalhar, uniforme que o identifica como oficial de controle animal. O título e o conceito do cargo mudaram para melhorar a imagem da atividade. Em outros tempos, ele seria apenas um laçador de cães. Aquele mesmo: o homem da carrocinha – ou a ponta do sistema que "eutanasiou" quase 14 mil cães em 2007.

Em São Paulo, a má fama teve origem em 1973, quando o CCZ foi criado para controlar uma epidemia de raiva que tomou conta da cidade. Como a doença era transmitida aos humanos pelos cães, uma das medidas para conter o avanço do problema consistia em recolher o maior número possível desses bichos das ruas, além de expandir campanhas de vacinação. A forma violenta como se dava a captura e o sacrifício em massa só aumentou o sentimento de repulsa à profissão.


Focinhos, patas e olhares disputam atenção atrás das grades dos canis no Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo
"Na época, os cães representavam um risco em potencial. Os funcionários tinham uma cota para trazer na carrocinha, então pegavam tudo o que viam na rua. Laçar um animal não é uma cena bonita. Isso contribuiu para que a população nos detestasse", diz Marcão. "'Assassino' é o que ouço de mais leve." Os protetores de animais mais radicais partilham do xingamento: argumentam que a incompetência e a insensibilidade da equipe do CCZ são responsáveis pelo "massacre". O departamento alega que está apenas removendo o que a própria sociedade descartou. "Faço um serviço que não deveria existir. Só existe porque as pessoas abandonam os animais nas ruas", afirma o oficial.

O preconceito contra o "trabalho sujo" esconde uma contradição: os mesmos que recolhem os animais e, por vezes, os executam, tiram do perigo os rejeitados e perdidos, tratam suas doenças, os alimentam e lhes dão a atenção. Contradição que, no caso de Marcão, representa um fardo difícil de suportar.

Ele adotou sete cães, que gastam em ração e medicamentos cerca de 300 dos 890 reais que ele recebe pela prefeitura. "Ainda que só dê para cuidar na base do fubá com pescoço de frango, dá-se um jeito", diz. Para Marcão, como pai de família e provedor do canil particular, o jeito foi arrumar bicos aos fins de semana. Como eletricista, pintor, pedreiro, encanador e mecânico de máquina de lavar, ele dobra a renda mensal. Folga só dois dias a cada quatro meses, quando gosta de ir ao cinema ou assistir a um DVD.

A lista e a história dos sortudos que vivem sob seu teto disputam em dramaticidade: o rottweiler Tob foi pego doente em uma praça, a vira-lata Nina foi deixada por um amigo que se mudou para o Japão e a mestiça de poodle com schnauzer Princesa foi apreendida por maus-tratos. Ainda tem a vira-lata Lindinha, resgatada na pista do aeroporto de Cumbica, o pinscher Bob, renegado pela dona por sofrer de epilepsia, a vira-lata Bolinha, que seria sacrificada por não conseguir comer sozinha, e o "mestiço de pinscher-com- não-sei-o- quê" Spit, atropelado. O pinscher Tico, o primeiro a ser adotado, com cinomose, morreu um mês atrás.
Os dramas não são menores que os encontrados no órgão da Secretaria de Saúde do município. Para lá vão os marginalizados de uma sociedade que, segundo a veterinária sanitarista Vânia Plaza Nunes, especialista em bem-estar animal pela Universidade de Cambridge, está diante de um enorme "mercado pet". "A indústria fomenta a idéia de que os animais de estimação são maravilhosos, sem dizer que há a necessidade de cuidado. Eles não são um objeto descartável, são seres vivos e sentem", afirma.

Estima-se que a população de cães no Estado de São Paulo seja de 12 milhões. Também segundo estudo do Instituto Pasteur (entidade da Secretaria da Saúde do Governo do Estado de São Paulo dedicada à pesquisa científica sobre a raiva animal), em 2001 existia aproximadamente um cão para cada quatro habitantes. Vânia diz que falta uma política de controle animal. "Os CCZs são horríveis, as entidades de proteção são ineficientes e os bichos continuam soltos por aí", afirma.

Até 17 de abril deste ano, os animais que dessem entrada no CCZ tinham três dias para ser resgatados por possíveis donos. Caso isso não acontecesse, eles passavam por uma avaliação física e comportamental e eram encaminhados para a eutanásia ou a adoção. Quanto maior o porte, a idade, a agressividade e as doenças, menores as chances de sair do canil com uma coleira. Dos 2.244 que entraram lá nos três primeiros meses de 2008, pelo menos 1.800, ou 80% do total, receberam a injeção letal.

Ao sancionar o projeto de lei de autoria do deputado Feliciano Filho (PV), o governador José Serra decretou no Estado a proibição da eutanásia em cães e gatos saudáveis e o adiamento para 90 dias caso os animais tenham feito vítima. A eliminação imediata fica restrita aos animais que apresentarem doenças infecto-contagiosas incuráveis.
Passa do meio-dia, mas o sol não alcança a recepção do CCZ, cinza como o pátio e a fachada. Lá, nunca faz silêncio. As pessoas que entram pouco falam. O barulho vem dos cachorros. Uivam, choram e latem. Um cartaz na parede estampa uma das frases ouvidas por ali: "Meu animal foi capturado". Abaixo: "A responsabilidade é sua. Animais não conhecem leis; proprietários, sim".

Marcão com cinco cães que adotou: xodós da família
Marcão já se acostumou com a movimentação do número 86 da Rua Santa Eulália. Carrocinha que sai para buscar agressores, que volta com a história de que o próprio dono simulou uma invasão do cão para livrar-se dele. Gente carregando bicho atropelado, queimado e doente para o sacrifício. Alguns na expectativa para resgatar um cão que a carrocinha levou. Outros, ansiosos por adotar um cão que lhes faça companhia.

O motorista de caminhão Luiz Carlos Perpétua pede à funcionária da recepção um crachá de visitante. Diz que é do interior, tinha um boxer que morreu de velhice no mês anterior e quer encontrar um cão dócil e menor. "Parece que está faltando alguma coisa lá em casa. Sinto saudade até desse cheiro", diz. É encaminhado ao canil de adoção. Curioso, Luiz espia entre as grades e deixa os animais em polvorosa.

Eles enfiam desesperadamente o focinho entre as barras de ferro, batem contra o cadeado, balançam o rabo, esticam patas e língua na tentativa de alcançar quem lhes dê atenção. Outros, conformados ou cansados, aproveitam a deixa dos colegas para se recostar em algum feixe de luz, disputadíssimo.

É que, ao contrário dos presos, eles não têm direito a banho de sol. Nem a visita de parentes. Nem a liberdade assistida. Os canis não possuem iluminação – o que os deixa especialmente sombrios, frios e com forte odor de urina e fezes. Dentro do espaço de cerca de 1 metro quadrado, apenas uma vasilha de água fixa na parede e um pote comunitário de ração. Ao perceber o interesse de Luiz no setor de filhotes, Arquimedes Galano, veterinário responsável pelo Controle de Animais Domésticos do CCZ, aproxima-se.

– Você quer um animal pra quê?
– Pra ficar em casa, de colo.
– Então esses daqui não servem. Eles vão crescer e ter um porte de 15 quilos.
– Moro em casa, mas o espaço não é tão grande.
– Tudo bem. É importante a gente saber exatamente o que você está procurando. Volte no sábado que teremos mais opções.

Luiz agradece e promete voltar. Arquimedes afirma que é fundamental encontrar compatibilidade entre o possível dono e o animal para evitar um futuro abandono. Abandono que, várias vezes durante o dia, gera ligações ao número 156. Seja para tentar desfazer-se do próprio animal, denunciar uma agressão, avisar sobre um atropelamento ou um errante incômodo, os pedidos carregam um sistema no computador. Há cinco anos, a recepcionista Roberta Guimarães filtra, confirma e distribui os chamados entre os oficiais de controle animal.



Denílson: ajuda psicológica por sofrer pelos animais que põe na carrocinha
Desta vez, escala Denílson de Andrade e Nilson Novaes para atender a dois avisos de cachorros soltos em via pública na região da Zona Norte. No furgão quadrado e branco, chegam ao primeiro endereço e desconfiam de um cão de porte médio e pêlos amarelados, que descansa sob um ponto de ônibus lotado. Mas passam direto por ele. A descrição é de um "animal pequeno, branco, doente e um pouco arisco". A médica veterinária responsável pela remoção de animais, Sônia Cerri, quer investigar melhor: abaixa-se na frente do cão, que coloca a cabeça entre as pernas dela, pedindo carinho. Ao perceber a presença de Nílson e Denílson, que a essa altura já haviam vistoriado a rua inteira, o cão se assusta, atravessa a rua e por pouco não é atropelado. Some no quarteirão – e os agentes saem do chamado sem a captura.

A veterinária conta que o bicho fugiu em razão da movimentação atípica e de seu jaleco. "Eles têm olfato muito aguçado. Deve ter sentido o cheiro de algum outro cão assustado que encostou em mim no CCZ. Retornamos mais tarde ou amanhã, disfarçados", diz Sônia. Denílson acredita que o fracasso foi culpa da precipitação e diz que, para ganhar a confiança do animal, é preciso fazer parte do ambiente. Há cinco anos no emprego, o oficial já recebeu até acompanhamento psicológico por se culpar cada vez que "traía" um animal e o trazia para a "armadilha".

A carrocinha volta vazia ao CCZ. Hoje, essa cena é bem mais comum do que se imagina. "A maioria dos chamados é improcedente. E, como o atendimento não é imediato, em muitos casos, quando chegamos, o animal não está mais. Não é que as pessoas sejam mentirosas", afirma Denílson. "Antigamente, colocavam tanto animal aí dentro que o eixo da roda ficava até arriado", completa Nílson, num momento de distração da veterinária, que percebe a tempo de emendar um "isso é passado".

O que também ficou para trás, após a lei, foram as saídas diárias de captura. Não há mais infra-estrutura. Marcos Antonio Vigilato, gerente do CCZ, nega que o fim da eutanásia tenha superlotado os canis. Mas admite que agora saem da sede apenas as viaturas destinadas a emergências e casos graves. "Temos capacidade para 400 cães e trabalhamos com margem de segurança. Não posso promover maus-tratos e condições indesejáveis para os animais ficarem. Estamos realizando feiras de adoção em parceria com ONGs para aliviar o espaço e atender a população", diz Vigilato.
Apesar dos esforços, duas ou três vagas são abertas por semana nos canis de adoção, onde predomina o vira-lata entre 1 e 3 anos, de porte médio. Funcionário do setor há 20 anos, Dionísio afirma que antes da lei eram adotados cerca de três por dia, porque as pessoas se sensibilizavam mais. Temiam que os animais fossem eutanasiados. "Agora, acontece o contrário. Querem deixar os animais como se aqui fosse um abrigo", diz.

O telefone toca na recepção. Alguém do bairro da Freguesia do Ó, Zona Norte, pede ajuda: dois pit bulls mataram outros cachorros, atacaram uma criança e recebiam pauladas da população. Roberta passa o chamado à frente dos demais e avisa Marcão, que convoca Denílson e o motorista. Quinze minutos depois, não há uma só pessoa da rua de barro que não torça o pescoço e atrase alguns minutos para ver a carrocinha passar. Nem mesmo os vira-latas, metidos até as orelhas em sacos de lixo, mastigando sabe-se lá o quê. Crianças começam a se aglomerar e a correr ao lado da viatura, indicando o local do acidente. "Lá embaixo", gritam.

Na beira do córrego imundo, bem ao lado de casas de madeira, o casal de agressores foi amarrado. A dupla de agentes observa de longe a reação dos animais. O domínio não demora dez minutos nem requer cambão (instrumento de aço que prende o bicho pelo pescoço e o mantém a distância): eles transformam a corda em coleira e os levam para a viatura. A fêmea, cor de mel, era um esqueleto ambulante com fratura craniana, tetas pesadas e um cansaço profundo. O macho, preto, ainda bufava e jogava o corpo sobre os curiosos, mas era impedido por Marcão.

Com a situação sob controle, os oficiais saem em busca de mais informações. "Eles sempre vão dizer que não provocaram a agressão", diz Denílson. O filho de uma moradora, de 11 anos, levou uma mordida da fêmea no peito e foi levado ao hospital. Com uma camiseta rasgada na mão, a mãe da vítima é logo identificada. "O pessoal não quis esses bichos e abandonou aqui na favela. Não é a primeira vez que eles mordem alguém. Eles grudaram no meu filho e só soltaram porque o pessoal deu paulada neles", diz. Marcão não se contém:

– O que o seu filho estava fazendo quando foi atingido?
– Ele foi pegar a cria. Disse que cada filhote valia 50 reais. Deixou todos comigo.
– Mas e se a senhora não conseguir vender? Não vai ter como cuidar deles, eles vão crescer e vai acontecer a mesma coisa.
– Ah, eu jogo no rio.
– Então é melhor a senhora me dar que eu levo e a gente tenta a adoção deles lá.
A moradora se convence e traz uma caixa de papelão. Dentro, cinco filhotes com 30 dias. "Sabia. É natural a mãe reagir, é instinto proteger a cria", diz Marcão. Alguns moradores interrompem a caminhada rumo à carrocinha; trazem vira-latas e perguntam se "não cabe mais um". Os agentes explicam que o CCZ está lotado. Pelo menos 50 pessoas acompanham a caixa ser colocada no compartimento da fêmea e uma criança, chorando, pede que não matem os animais. "Fica sossegado. Não tem mais disso, não", diz Denílson.

Os animais tinham três dias para ser encaminhados para a eutanásia ou a adoção. Depois da lei, a espera é indeterminada
Fêmea, macho e filhotes são destinados ao departamento de agressores/invasore s, lotado com 180 animais de porte grande. A mãe terá direito de amamentar a prole no canil 19. Com um sistema imunológico resistente, os cinco poderão ser levados para adoção. O casal não deve ter a mesma sorte. Como dificilmente alguém os levará para um lar, ficarão 90 dias no corredor da morte – isso se resistirem ao sofrimento causado pelo confinamento. O macho é obrigado a uma tortura ainda maior: à frente de seu canil fica a sala onde se realiza a eutanásia e o freezer que congela as carcaças, consideradas dejeto hospitalar. O departamento de Limpeza Urbana da cidade (Limpurb) as recolhe e destina para a incineração. Eles não viram sabão, como o imaginário popular especula.

É bem possível que Marcão participe dos últimos momentos desses cães. Muitas vezes, ele é chamado para segurar o animal enquanto assiste à aplicação da injeção letal. Apesar da experiência rotineira, nunca se acostumou. Já brigou muito porque não aceitava nenhum tipo de eutanásia; agora acredita que, em alguns casos, é necessário. "Quando me identifico com o animal, choro que nem criança e não consigo dormir. Prefiro que seja eu a segurá-lo. Pelo menos sei que vou acalmá-lo e ele vai receber um carinho", afirma. Marcão sai do trabalho às 17h, a caminho de Pirituba. Só em casa, quando estiver perto da família, vai aliviar o peso do trabalho. E a compensação do dia duro vai começar já quando abrir o portão. É quando é recebido com festa pelos cães que conseguiu salvar.


Um comentário:

Aip! disse...

Um texto cruel e realista. Mostra bem que até as pessoas que tem esse trabalho tão difícil se comovem com as atrocidades cometidas.