Segundo o advogado Daniel Lourenço, nós tratamos hoje os animais como coisas e não damos importância para a vida deles. Em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, ele diz que “houve períodos históricos em que os próprios seres humanos foram tidos como propriedade, como coisa, e tratados basicamente da mesma forma com que hoje tratamos os animais” e salienta que “os centros de pesquisa dentro das universidades baseiam-se no mito segundo o qual a pesquisa biomédica só é possível com experiências em animais”, o que, para ele, é mentira e anti-ético, uma vez que são usados argumentos relacionados à ética para rejeitar pesquisas e experimentos científicos com seres humanos.
Nesta entrevista, Daniel analisa a recém-aprovada Lei Arouca, que estabelece regras acerca do uso dos animais como cobaias. Ele também reflete acerca do direito e da ética animal a partir do uso que se dá aos animais hoje nas universidades, nas pesquisas universitárias e até mesmo pela sociedade em geral. “Acho eticamente complicado justificarmos o abate de animais para alimentação sob todos os prismas, principalmente quando temos alternativas alimentares plenamente viáveis nesse sentido. Comemos animais por prazer e hábito, não por necessidade”, disse ele.
Daniel Braga Lourenço é graduado em direito pela PUC-Rio com especialização em Direito Ambiental Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Realizou mestrado em Direito na Universidade Gama Filho. Atua como assessor jurídico na ONG Espaço Gaia, é coordenador do Instituto Abolicionista Animal e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Depois de muitos anos correndo no Congresso, o projeto que estabelece os critérios de uso de animais como cobaias foi aprovado e agora aguarda sanção do presidente Lula. Qual a sua avaliação sobre este projeto?
Daniel Lourenço – É triste constatar que todo esse tempo se mostrou insuficiente para que se percebesse que o PL n. 1.154/95 representa um retrocesso e não um avanço relativamente ao tema da utilização de animais na pesquisa científica. No campo ideológico, como partidário dos direitos dos animais, me oponho frontalmente a qualquer tipo de norma que corrobore a exploração e a instrumentalização dos animais. As chamadas leis de “bem-estar animal”, entre as quais indubitavelmente se inclui o PL supramencionado (comumente designado como “Lei Arouca”), trabalham com o equivocado paradigma do animal como coisa, como propriedade. Por essa razão, o âmbito de eficácia desse tipo de lei é, em realidade, bastante reduzido no que se refere à real salvaguarda dos interesses mais básicos dos seres envolvidos nas atividades humanas que estas leis pretendem regulamentar. A analogia com a escravidão humana é bastante ilustrativa para compreendermos melhor esse ponto.
Como é sabido, houve períodos históricos em que os próprios seres humanos foram tidos como propriedade, como coisa, e tratados basicamente da mesma forma com que hoje tratamos os animais. Com o passar do tempo, principalmente a partir do século XVII, houve leis de “bem-estar” para os escravos, tal como hoje temos leis de “bem-estar” para os animais. Existiram normas, por exemplo, que limitavam ou reduziam a quantidade de açoites diários. É claro que, do ponto de vista meramente quantitativo, isso representava uma melhoria na condição do escravo, pois é sempre melhor receber menos castigo do que mais. Todavia, do ponto de vista qualitativo, esse tipo de norma não retirava o escravo da odiosa condição de objeto. O mesmo ocorre com os animais. As leis de proteção animal eventualmente podem acarretar melhorias pontuais, quando muito, mas não retiram a condição do animal como coisa. O PL 1.145/95, nesse sentido, não traz um questionamento sobre a moralidade em si de utilizarmos animais como objetos de pesquisa, mas apenas regulamenta essa atividade, anestesiando a consciência do cidadão não atento às raízes do problema.
IHU On-Line – Que novas perspectivas podemos ter em relação ao direito dos animais no Brasil? De que forma essa lei pode evoluir?
Daniel Lourenço – As perspectivas a curto prazo não são boas, até porque o Brasil, para não fugir à regra dos demais países, não reconhece os animais como autênticos sujeitos de direitos. Os animais, portanto, não titularizam direitos subjetivos e continuam indevidamente atados ao dogma da coisificação: são tidos como “bens móveis” pela legislação civil e “recursos naturais” pelas leis ambientais. Essa visão instrumental revela o caráter descartável da vida não-humana. Vale a pena novamente frisar que há uma distinção clara entre a ideologia do protecionismo animal e dos direitos dos animais propriamente ditos. Como mencionado, as ditas leis de proteção animal apenas regulamentam o uso dos animais, colocando eventuais salvaguardas no intuito de minimizar o paradoxal “sofrimento desnecessário”, mas jamais questionam a moralidade dessas mesmas instituições e condutas. A teoria dos direitos dos animais, por sua vez, tendo por base o fato de que boa parte dos animais é senciente, postula o rompimento da idéia de que deles possamos fazer uso como meios para nossos fins, incompatível, portanto, com o paradigma do animal como propriedade.
Como afirma Tom Regan, não queremos jaulas vazias ou maiores, não queremos jaulas. Nessa linha, não lutamos pela regulamentação e sim pela abolição da utilização de animais. Muito embora o desafio seja gigantesco, vemos que, paulatinamente, o tema dos direitos dos animais vem sendo discutido com maior seriedade no meio acadêmico e com isso, vem ganhando legitimidade. Exemplo disso é o crescente envolvimento de pessoas sérias e renomadas no estudo do tema, e da existência, por exemplo, de uma “Revista Brasileira de Direito Animal”, bem como da realização, agora em outubro, do “I Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal na Universidade Federal da Bahia”. Não vejo como as leis de bem-estar possam efetivamente “evoluir”, a não ser que deixem de regulamentar e passem a abolir o uso de animais. O paradigma do modelo animal pareceu viável nos séculos XVIII e XIX, pois os conhecimentos fisiológicos e anatômicos ainda eram bastante incipientes. Hoje, em pleno século XXI, essas idéias são claramente comodistas e obsoletas.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a forma como os animais são usados dentro das universidades e centros de pesquisa?
Daniel Lourenço – Os centros de pesquisa dentro das universidades baseiam-se no mito segundo o qual a pesquisa biomédica só é possível com experiências em animais. Isso é uma falácia e, mesmo que não fosse, a pesquisa não-consentida deveria ser rejeitada com base em argumentos nos mesmos argumentos éticos que utilizamos para vedá-la quando feita em humanos. De fato, a pesquisa científica que faz uso de animais convive com um paradoxo insolúvel, qual seja: ou os animais são iguais a nós em todos os aspectos biológicos relevantes e não devemos levar adiante a pesquisa não-consentida pelas mesmas razões pelas quais não a conduzimos em seres humanos, ou os animais são diferentes de nós nesses mesmos aspectos e, por esse motivo, pela impossibilidade real de extrapolação e derivação de resultados, a pesquisa seria igualmente injustificável do ponto de vista técnico. Mesmo sob uma ótica meramente reformista, as universidades deveriam priorizar o uso de recursos substitutivos, garantir a objeção de consciência e vedar absolutamente a repetição de experimentos com resultados conhecidos. Penso, no entanto, que o real enfrentamento do tema nos leva a concluir, tanto do ponto de vista técnico, como ético, pela rejeição ao modelo animal.
IHU On-Line – Hoje, 115 milhões de cobaias são usadas em um ano, para pesquisas científicas. Como avalia as leis de controle de uso de cobaias no mundo?
Daniel Lourenço – As leis de controle de uso de cobaias no mundo tendem a adotar a filosofia dos 3R’s (Replacement, Reduction, e Refinement). Sob esse prisma, são tidos como métodos alternativos todos os que se propõem a reduzir o número de animais utilizados para a execução de um determinado experimento, diminuir o sofrimento animal por meio do refinamento da técnica e da completa substituição do uso de animais por outros métodos. A meu juízo, somente a última espécie se coaduna com o que dispõe o § 1º do art. 32 da Lei n. 9.605/98. No entanto, contaminados por uma filosofia cartesiana, o experimentador é comumente dessensibilizado ante o sofrimento de seus pacientes. A dor e o sofrimento em sentido amplo são manifestações primariamente orgânicas que se revelam igualmente relevantes tanto em humanos quanto em não humanos. Não há qualquer razão do ponto de vista científico ou moral para que consideremos que esses estados negativos menos importantes quando sentidos por animais não-humanos. É somente por um especismo ordinário, tão simplório quanto o racismo mais descarado, que vedamos aos animais o acesso a essa esfera mínima de garantias e de igual consideração de interesses.
IHU On-Line – Como o senhor trata a Teoria dos Entes Despersonalizados?
Daniel Lourenço – A obra Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008), fruto de minhas pesquisas por ocasião da realização do mestrado em Direito, pretende discutir criticamente o paradigma do animal como propriedade. Nesse sentido, procuro fundamentar a colocação do animal como sujeito de direito. Para tanto, temos várias alternativas. A maior parte da escassa doutrina abolicionista no país tenta fazê-lo utilizando-se da categoria de “pessoa”. Embora não discorde fundamentalmente de que animais possam eventualmente vir a ser categorizados como “pessoas” no âmbito do Direito, acredito que essa opção revela uma difícil implementação de ordem prática, pois necessitaríamos de uma modificação legislativa significativa.
Além disso, certamente esbarraríamos no nosso “orgulho de espécie” por meio do qual é sempre mais complexo o processo de inclusão de não-humanos dentro de uma mesma categoria em que figuram os humanos, que sofreriam uma “ameaça conceitual”. Procurando fugir desses problemas, desenvolvo criativamente uma distinção conceitual entre pessoa e sujeito de direito, afirmando que há sujeitos de direitos personificados (pessoas) e sujeitos de direitos despersonificados ou despersonalizados. Entre os sujeitos de direito personificados, teríamos os humanos (pessoas humanas) e não-humanas (pessoas jurídicas), o mesmo acontecendo com os não-personificados. Teríamos entes despersonalizados humanos (embrião) e não-humanos (entes do art. 12 do CPC, por exemplo, e os animais). Essa solução me parece menos traumática e mais palatável.
IHU On-Line – Além do uso de animais como cobaia, como você vê os sistemas de criação e abate de animais para consumo hoje no país?
Daniel Lourenço – Tal como mencionado, as leis que regulamentam o também paradoxal “abate humanitário” trabalham sob o paradigma do animal como instrumento, como coisa. Para os fins de proteção do interesse desses animais de continuarem a viver de acordo com o seu ciclo biológico natural, de nada adianta que a sua morte seja pretensamente indolor ou que até o abate seja tratado do modo mais “humanitário” possível. Para eles o fim será sempre o mesmo: a morte. Se defendo que animais têm o direito à vida, me oponho a que sejam utilizados para o abate, não importa o quão tecnicamente refinado seja esse abate. Acho eticamente complicado justificarmos o abate de animais para alimentação sob todos os prismas, principalmente quando temos alternativas alimentares plenamente viáveis nesse sentido. Comemos animais por prazer e hábito, não por necessidade.
IHU On-Line – Gostaria de refazer uma pergunta que o senhor fez a si mesmo no texto “a ‘textura aberta’ da linguagem e o conceito jurídico de animal”. Na linguagem do Direito, quais os seres vivos que poderiam ser abarcados no conceito de animal? Como são feitas as diferenciações entre os animais dentro do debate sobre ética animal e direito animal
Daniel Lourenço – No artigo que você menciona, procurei fazer uma abordagem sobre o conceito jurídico de animal. Percebemos nitidamente que esse conceito sofre diversas distorções à mercê dos nossos próprios interesses. É, de fato, bastante curioso, por exemplo, verificar, que de acordo com nossa legislação, o homem mesmo não é tido como uma espécie animal, pois o art. 17 do Decreto n. 24.645/34 define animal como sendo “todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos”. Repare que há um retorno romântico, quase que mítico à mentalidade pré-darwiniana do homem como semi-divindade, colocado absolutamente apartado no ápice da “Grande Cadeia do Ser”. Nesse sentido, a meu juízo, há uma supervalorização do problema de se definir onde se situa a linha biológica a partir da qual os animais titularizariam direitos ou não. Muito embora, nesse sentido, admita que exista, de fato, uma zona de incerteza onde não sabemos precisar se determinadas espécies fariam jus a essa inclusão como sujeitos de direitos (ex.: insetos e microorganismos), há uma zona de certeza bastante significativa que inclui a vasta e larga maioria dos animais que exploramos diariamente
(www.EcoDebate.com.br, 02/10/2008) entrevista publicada pelo IHU On-line, 30/09/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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