domingo, 1 de março de 2009

A farra da Quaresma

Samantha Buglione

Quaresma, palavra latina que significa quadragésima é utilizada para designar o período de quarenta dias que antecedem a festa ápice do cristianismo: a ressurreição de Jesus Cristo, que é comemorada no famoso Domingo de Páscoa. Essa prática data do século IV e é a comemoração que precede a morte do Cordeiro Imolado. Segundo a crença cristã Jesus entrega-se, voluntariamente, à morte para salvar todos os seres humanos dos seus pecados. A grandeza de seu ato e da sua divindade é comprovada no milagre da ressurreição. Neste tempo, o da quaresma, os cristãos são convidados a fazerem uma comparação entre suas vidas e a mensagem cristã expressa nos Evangelhos. Essa comparação significa um recomeço, um renascimento para as questões espirituais e de crescimento pessoal. A Quaresma, com seu jejum, penitencia e caridade remonta mais a época de minha avó do que a conduta dos fanfarrões dos dias de hoje. Este período é mais conhecido pelos chocolates do domingo e pela Farra do Boi. Parece que a penitencia foi substituída pela bebedeira e pela gula e a caridade pela violência. A justificativa, afinal os seres humanos sempre tem justificativas para suas práticas, ainda mais as violentas, chama-se tradição. Mas não a tradição presente na orientação do tempo da quaresma, a tradição aqui é a da farra: a farra da quaresma. E essa farra, a do boi, usa tradição e folclore para se justificar. Vamos ser sinceros: é mais fácil jogar a razão para a tradição do que para um ato livre de crueldade e, é muito mais agradável farrear atrás do boi indefeso do que fazer penitencia, jejum e caridade.

No Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câmara Cascudo (1962), não existe o verbete "farra do boi", apenas "boi-na-vara", que é explicado como um "habitualismo ilhéu", tido como uma "revivescência da tourada-a-corda praticada no Arquipélago dos Açores", conforme explica Walter Piazza. O tal "habitualismo" tratava-se de fustigar o animal, depois matá-lo e repartir a carne entre os participantes. O ponto é que a farra tratada hoje não é a "originalmente" - se é que se pode dizer que o original existe - deixada pelos açoriano-brasileiros. As ditas tradições são ressignificadas e, muitas vezes, usa-se o argumento do folclore para isentar qualquer feito. Aqui entra a ficção: defende-se uma tradição que pouco se conhece. Mario de Andrade definiu o boi como "o bicho nacional por excelência". Afinal, promove alimento e diversão: pão e circo, para dizer de outra forma. Mario de Andrade definiu o boi como "o bicho nacional por excelência". Afinal, promove alimento e diversão: pão e circo, para dizer de outra forma. A farra do boi ainda muito presente no estado de Santa Catarina e no discurso de políticos eleitoreiros é sintomática de uma moralidade humana: a violação ao principio da igualdade e especismo.

É inaceitável chamarmos uma prática de tradição quando o seu sentido se perdeu. O rito não é mais o mesmo e não o sentido - o da Quaresma - está presente. Se todos os crentes que fazem uso da tradição a fizessem conforme seus preceitos religiosos a violência não poderia ser a forma de viabilizar a festa.

O boi, hoje, é perseguido a caminhão e a sua morte é o gozo da violência. "Boi de campo", "boi-no-laço", "boi-solto", "brincadeira-de-boi", ou, simplesmente, "boi" são algumas das denominações para explicar algo próprio de uma época quando parte do cotidiano das atividades agrícolas e domésticas dos açoriano-brasileiros. A tal farra do boi tem a ver com as antigas formas de se amansar os animais destinados ao carro de boi, à tração do engenho ou à lida do tropeiro, a quem cabia o comércio do gado chucro. Pois bem, hoje, nas cidades, já não há nem um, nem outro. O boi se compra cortado e manso no supermercado. Os tropeiros viraram criadores e ninguém mais precisa de carro de boi para transportar coisa alguma, tampouco de engenho para os grãos.

Acontece que se tratando da farra do boi não há memória a ser preservada, porque nem ao menos se sabe o que preservar. A velha Ilha do brigadeiro José da Silva Paes de outrora, que recebeu, em meados do século 18, os açorianos e madeirenses, pouco guarda de suas características originais e suas razões. Pouco preserva da arquitetura, da vegetação, dos adagiários e da lida caseira na forma de fazer as coisas do dia-a-dia. As ruas de chão batido e de pedra deram lugar ao asfalto. Parte da praia cedeu espaço às avenidas e à especulação imobiliária. Ainda há uma figueira um tanto solitária na praça, que para alguns (a praça) é perigosa e até espaçosa. A questão é que pouco, muito pouco, das práticas, dos gostos, da forma de viver a vida de outrora se mantém entre nós. Talvez um pouco da festa do divino, de alguma técnica de pesca, algum doce que em breve será esquecido pelas gerações futuras. Fica, pois, a pergunta: por que tanto empenho em preservar a "farra do boi"? Por que, diante de tanta riqueza - arquitetônica, por exemplo -, se quer investir exatamente ali, no que, hoje, sem sentido, apenas simboliza a crueldade e a violência?

O "boi-na-vara" dos açoriano-brasileiros e das festas da época se perdeu, assim como tantas outras coisas se perdem na história. Nos falta a alma que justifica a ação. Sim, falta alma na comemoração que teimamos em manter. Uma tradição não existe sem o sentido vivo que a deu origem, sem a razão que a preserva. O que, antes, era um misto de euforia e respeito - afinal, o boi seria o alimento para tantos por um bom tempo - é, hoje, vandalismo. Sim, porque uma festa sem razão, que viola, agride e faz sofrer simplesmente porque assim o quer, é um "habitualismo" difícil de admitir-se como expressão dos valores comuns de uma determinada comunidade. Por outro lado, alguns irão dizer que a resignificação da farra faz parte do processo natural das civilizações e que hoje, para muitos, ela é um agregador de determinadas comunidades, exercício de coragem e cultura. Porém, coragem pressupõe condições mínimas de igualdade, o boi está preso e quando solto sozinho. Além disso, se o que agrega uma comunidade é um ato de violência, é porque estamos demasiadamente enfermos e o belo sentido da Quaresma crista totalmente perdido. Podemos dizer que a prática atual se constituirá como uma nova tradição, que presa o risco da força, mas não se trata mais do "boi-na-vara" dos açoriano-brasileiros, assim, o argumento da tradição, fazendo referencia à historia não faz mais sentido. Entretanto, uma tradição pressupõe o mínimo de razão pública, ou seja, a representação de valores comuns de determinada sociedade e a farra, hoje, além de tudo viola a lei.

Sendo a "farra" uma "festa" dos dias de hoje, é neste contexto que deve ser compreendida. Ou seja, num contexto em que a satisfação de uns não pode se dar à custa da dor do outro, mesmo que este outro seja um ser subjugado e com preço - no caso, o boi. Quando se fala em direitos dos animais não se promove a igualdade entre diferentes espécies, porque não há igualdade entre elas. O que se observa é a igualdade em considerar os diferentes interesses que decorrem de seres vivos diferentes. Por certo o principal interesse aqui é viver a vida, sem dor, sofrimento ou violência. O que a farra do boi nos permite é olhar no espelho e perceber que a moralidade humano quase não mudou. Nossa prática de correr e matar quem subjugamos e não reconhecemos valor não é nova e o argumento é muito próximo: racismo, sexismo e especismo pertencem a mesma estrutura cognitiva de desconsiderar a diferença em nome do benefício de quem domina a ação.

Somos ainda racistas e especistas. Ignoramos o valor da diferença e fazemos dela argumento útil para justificar interesses. No caso dos animais trata-se de especismo que é, igualmente, uma discriminação praticada "pelo homem contra outras espécies", como explica Richard Ryder. Tanto o racismo quanto o especismo - e até o sexismo -, conforme observa Sonia Felipe, "não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aquele contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento". Parece que não apenas as tradições se ressignificam, mas os preconceitos também: muda-se para ficar tudo igual. Para os defensores dos direitos dos animais, o princípio fundamental é o de que todos os animais não-humanos merecem viver de acordo com suas próprias naturezas, livres de serem feridos, abusados e explorados. Esse é um princípio que vai além do que advoga o movimento pelo bem-estar animal, que objetiva garantir o mínimo de bem-estar aos animais que são explorados antes do abate. Ou seja, além do bem estar o que se observa é que para que princípios como o da igualdade façam sentido é preciso coerência e isso implica em respeitar os seres vivos - humano ou não - na sua singularidade e forma de viver a vida. A negação da idéia do direito de liberdade dos animais ou do cuidado com o seu bem-estar reforça o quanto nos falta compaixão, não apenas com os da nossa espécie, mas com outros animais, também capazes de sentir dor, medo, prazer e afeição.

Uma das poucas coisas que nos diferencia dos outros animais é a possibilidade de constituir um traço biográfico. Ninguém vai ver inscrito em pedra ou em uma canção a lembrança de um grande pássaro que fez algo de notável pela sua espécie, salvo na mitologia. Mais que uma dádiva, isso é uma responsabilidade e exige disciplina (que nada mais é do que a idéia de ‘discípulo de si mesmo'). Uma vez que temos o livre-arbítrio dos cristãos, a liberdade dos clássicos ou a razão dos iluministas, podemos escolher, em larga medida, o nosso próprio destino. Não no sentido de resultado específico ou esperado, mas no de agir conforme nossas intenções e vontade. As opções são várias, posso ir ao encontro imediato de uma prática hedonista, de uma felicidade a qualquer preço e recompensar meu cérebro com as descargas químicas de prazer; ou posso agir no sentido da perfectibilidade pessoal, de um projeto, de uma vontade.

Interessante é perceber que o que nos faz tão humanos, como a preocupação em melhorar a qualidade de vida, lutar contra a miséria, diminuir a dor, preservar a vida, é tudo, absolutamente tudo, que se esvai na forma como a farra do boi é feita. Não mais o respeito ao alimento, não mais a preocupação com a dor, não mais o respeito à vida. Apenas o gozo, a festa, o prazer egoísta. É aterrador o quanto a vida se vulgariza por atos como este. Farrear, matar, arriscar a própria vida sem razão expressam o desejo egoísta que compensa a morte. Nas palavras do poeta Sri Aurobindo, "vida é vida - seja de um gato, cão ou homem. Não há diferença entre um gato e um homem nesse aspecto. A idéia de diferença é uma criação humana para o seu próprio proveito".

Por conta disso, é possível concluir que a farra do boi serve apenas para uma coisa: promover o risco, levar ao limite e divertir aqueles que vibram com a morte cruel. O boi-na-vara tradicional não existe mais, como também não existem mais as razões para aquela prática. Assim, não há conflito algum entre tradição e proteção aos animais. Simplesmente porque não há mais a tradição que se apregoa. O que há é crime: violação do art. 32 da Lei nº 9.605, de 1998, que imputa pena de detenção de três meses a um ano e multa para quem "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Ainda o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembléia da Unesco, em Bruxelas, a 27 de janeiro de 1978, destaca que "todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o mesmo direito à existência". A tradição se dissipou. Restou apenas um álibi para a crueldade. E, por fim, a morte: a morte tradicional do boi, talvez a única tradição em tudo isso.


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