domingo, 1 de março de 2009

Vitela: um caso de crime hediondo

Paula Brügger

"O homem moderno toma o Ser em sua inteireza como matéria-prima
para a produção e submete a inteireza do mundo-objeto
à varredura e à ordem da produção".
(Martin Heidegger)

Segundo Paul Kingsnorth (2001), a produção industrial de leite é uma das indústrias mais tristes. Quanto mais leite e laticínios são consumidos mais as vacas são tratadas como máquinas de produzir leite para seres humanos. De acordo com o grupo PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), cerca de metade das vacas americanas vivem em fazendas de produção intensiva. Passam suas vidas em alojamentos de concreto ligadas a máquinas de ordenhar que, não raro, lhes dão choques elétricos. Mastite e infecções bacterianas, comuns em regimes intensivos, freqüentemente deixam resíduos de pus no leite que produzem. Devido à alta demanda por leite, as vacas de hoje produzem o dobro do que produziam há 30 anos e até 100 vezes mais do que produziriam no estado natural. As vacas da década de 1990 viviam apenas cerca de 5 anos, em contraste com os 20 a 25 anos de vida de 50 anos atrás. São entupidas com drogas e químicos para prevenir doenças e aumentar sua produtividade, incluindo o famoso hormônio de crescimento bovino. Os bezerros que são obrigadas a parir regularmente - para estimular a produção de leite - são separados delas em 24 horas. Não tomarão seu leite e serão vendidos como carne. Em 60 dias as vacas serão engravidadas de novo, diz Kingsnorth.

Peter Singer (2004) afirma que a indústria de produção de vitela é a atividade rural intensiva mais repugnante do ponto de vista moral. O termo vitela era reservado aos bezerrinhos abatidos antes do desmame. A carne desses animais muito jovens (macia e pálida porque não comem capim) provinha dos animais indesejados, do sexo masculino, descartados pela indústria leiteira. Um ou dois dias depois do nascimento eles eram levados para o mercado onde, famintos e assustados pelo ambiente estranho e pela ausência das mães, eram vendidos ao matadouro. Na década de 1950 produtores holandeses encontraram uma forma de fazê-los atingir cerca de 200kg (em vez de cerca de 50kg que pesam os recém-nascidos) sem que sua carne se tornasse vermelha ou menos macia. Para isso os animais passaram a viver em condições extremamente antinaturais, confinados em baias de cerca de 56cm x 137cm. Quando pequenos, são acorrentados pelo pescoço para evitar que se virem. O compartimento não tem palha ou qualquer outro tipo de forro onde deitar-se (pois os animais poderiam comê-lo, comprometendo a cor da carne). Sua dieta é líquida, baseada em leite em pó desnatado, vitaminas, sais minerais e medicações que promovem o crescimento. Assim vivem durante cerca de quatro meses, até o abate. Nessa vida miserável, mal podem deitar-se ou levantar-se. Tampouco podem virar-se. Os bezerrinhos sentem uma falta imensa de suas mães. Também sentem falta de alguma coisa para sugar, uma necessidade tão forte quanto nos bebês humanos: quando se oferece um dedo ao bezerro ele começa a chupá-lo como um bebê humano faz com seus polegares. Entretanto, desde o primeiro dia de confinamento, bebem sua refeição líquida num balde de plástico. Distúrbios estomacais e digestivos são comuns e também a diarréia crônica. O bezerro é mantido anêmico. A carne rosa, pálida, considerada uma iguaria, é na verdade uma carne anêmica. Para que cresçam rapidamente a maioria é deixada sem água, pois isso aumenta o consumo de seu substituto lácteo. A monotonia é outra fonte de sofrimento. Para reduzir a agitação dos bezerros entediados, muitos produtores os deixam no escuro. Assim, os bezerros já carentes de afeição, atividade e estimulação que sua natureza requer, vêem-se privados do contato visual com outros também. Os bezerrinhos mantidos nesse regime são muito infelizes e pouco saudáveis. Isso é o que aconteceu com o seu jantar no tempo em que ele ainda era um animal, diz Singer.

E a vitela no Brasil, como é produzida? Ainda que nem todas as etapas descritas por Singer e Kingsnorth estejam sempre presentes, a indústria de laticínios e da vitela é marcada pela violação dos corpos das vacas (que são forçadas a engravidar continuamente); pelo seqüestro de seu bebê e o roubo de seu alimento; pela tortura em cativeiro (quando há confinamento do bezerro); e pelo assassinato (já que se trata de morte desnecessária, movida por motivos hedonistas e portanto torpes). O correto, do ponto de vista ético, é a total abolição do consumo de leite e seus derivados.

Não é demais ressaltar que o consumo de leite está associado a diversos problemas de saúde como manifestações alérgicas (rinite, bronquite), além de provocar prisão de ventre, flatulência e outros distúrbios. Isso se deve, sobretudo, ao fato de muitas pessoas terem intolerância à lactose e, também, à dificuldade de metabolizar algumas proteínas presentes no leite, seja devido à sua elevada concentração (caseína), seja pela própria natureza da proteína (beta-lactoglobulina). Há ainda muita controvérsia no que tange à confiabilidade do leite como fonte segura de cálcio envolvendo questões relacionadas ao seu balanço/biodisponibilidade1.

Mas ainda que tais problemas não existissem, ou pudessem ser contornados (e alguns, de fato, podem), resta a questão ética relativa à forma como tratamos os animais. Ao nos compararmos com outras sociedades humanas que chamamos de primitivas, é possível constatar que nenhuma delas jamais dispensou um tratamento tão cruel quanto o nosso para com eles. O progresso que alcançamos é tão somente no plano técnico. No plano ético nosso progresso é mínimo, senão nulo. Em se tratando de sociedades industriais, o veganismo é a única opção eticamente correta.

Nota

1 Independentemente de adotarmos o veganismo, é bastante interessante compreender os fatores históricos, ecológicos e evolutivos subjacentes à inclusão do leite e seus derivados nas dietas humanas. Para uma rápida revisão sobre o assunto procure na Internet "Lacticínios + Wikipédia" (item História); para um maior aprofundamento recomendo, por exemplo, o capítulo que trata dos "lactófilos e lactófobos" (Lactophiles and Lactophobes: Milk Lovers and Milk Haters) no clássico livro "Good to eat - riddles of food and culture", do antropólogo Marvin Harris. Essas e outras referências, como o artigo da Dra. Denise Madi Carreiro (veja http://www.denisecarreiro.com.br/artigos_artigoleite.html) evidenciam porque o leite não é saudável ou necessário hoje.

Bibliografia citada:

KINGSNORTH, Paul. Mother's milk. The Ecologist, 31(5), junho, 2001: 38.

SINGER, Peter. Lá na fazenda industrial...In: Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Tradução de Alice Xavier. Rio de janeiro: Ediouro, 2002: 83-94.


http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=243:vitela&catid=45:paulabrugger&Itemid=1

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